Correspondência
Eu me autodeclaro “discípula de Mário de Andrade”, uma adepta ao que chamo de “culto mariano”. Desta forma, nesse texto de abertura nesse espaço, decidi refletir sobre uma das liturgias do culto mariano, a correspondência.
Recordo-me de uma conhecida do meio das artes e literatura que, há muitos anos, perguntou se eu não me preocupava com os rastros escritos que deixava pela internet, ressaltando que meus escritos, já que tinha pretensões literárias, poderiam ser, futuramente, catalogados. Confesso que, apesar das pretensões literárias, nunca imaginei que alguém pudesse se interessar pelos meus rastros, já que não tinha pretensões de sucesso. Mário de Andrade tinha essa consciência, ainda que seus livros, em vida, não fossem sucesso de venda, muito menos publicados por grandes editoras. A maioria de suas primeiras edições foram publicações de autor.
O escritor paulistano, no entanto, era um homem conhecido internacionalmente e, creio eu, por este motivo, pediu para que seu acervo epistolar só fosse revelado após 50 anos de sua morte.
Ao recordar dessa pergunta, tal qual Proust em busca do tempo perdido, fui em busca dos meus rastros escritos. Achei um bilhete do saudoso Moacy Cirne, à época leitor do meu blogue, quando me enviou seus livros. Talvez um rastro escrito com alguma relevância, não por mim, mas pelo poeta e especialista em quadrinhos. Em e-mail, apenas uma troca com um grande amigo escritor. Neste e-mail, confesso ao amigo uma fase difícil da minha vida e recebo uma afetuosa resposta sobre a felicidade em ler que eu estava superando aquelas adversidades. Lendo hoje, pensei que poderia ter continuado a correspondência, contar como a capacidade de ressurgir das cinzas como a “Phoenix” é uma metáfora ancestral, dadas minhas origens fenícias. Não continuei. Estou mais próxima do poema “Morte Absoluta” de Manuel Bandeira que da ânsia epistolar de Mario de Andrade. Meu amigo, embora tenhamos nos conhecido quando ele ainda morava em Recife, está mais para aqueles amigos “calados, distantes, que leem versos de Horácio mas secretamente influem na vida”*, que um destinatário feito Manu. Trocamos memes e figurinhas em momentos específicos de desequilíbrio. A amizade e cumplicidade de dois adultos próximos que trocam memes para expressar angústias é algo que prezo muito.
Nessa passagem de cartas para e-mails, e-mails para redes socias e aplicativos de mensagens, percebo que prefiro “falar” sozinha em redes de escrita, que propriamente trocar mensagens ou participar de grupos. Tenho apenas um grupo, em que falamos sobre tudo e, sobretudo, do Corinthians. No entanto, durante o isolamento da Covid, fui colocada em vários e, assim como das comunidades do Orkut, fui expulsa de muitos. Esses rastros escritos me dariam fama de briguenta, o que me causa uma risadinha de orgulho, já que Mário de Andrade tinha fama de briguento.
Dessa época de isolamento pandêmico, encontrei um grupo que tenho carinhosas lembranças. Fui colocada pelo administrador em seu grupo de amigos de longa data. Uma espécie de festa de aniversário onde eu só conhecia o aniversariante e, num determinado momento, o aniversariante saiu. Ficamos.
Os participantes eram, na sua grande maioria, homens, nascidos durante a década de 1970 e início de 1980, casados e gaúchos. Também falávamos de tudo e nunca as duas únicas mulheres do grupo foram ignoradas em suas opiniões. Sempre discussões e conversas interessantes e um dos integrantes me convidou para dar uma palestra online sobre gênero na escola em que ele trabalhava. Uma experiência muito gratificante para mim e, espero, para os estudantes daquela escola de Porto Alegre.
Ali também me apaixonei perdidamente por um gato cinza grafite com olhar de deus egípcio, muito parecido com o gato que vi, quando criança, na casa da minha avó, numa foto da Oum Khaltoum. As fotos e vídeos do gatinho eram um suspiro naqueles momentos tão difíceis para todos e, no meu caso, agravados pela síndrome do pânico e efeitos colaterais dos remédios que tomava. O dono do gato continuou me enviando fotos e vídeos durante todo tempo em que o neném esteve “afofurando” esse mundo, mesmo após minha saída, pois sabia que me faziam bem. Sou eternamente grata pela atitude doce e gentil. Pois é, este exposed de gaúchos contém gatinhos fofos.
Fiquei pensando, então, se Mário de Andrade estaria em grupos de whatsapp. Certamente, o pessoal do Sabadoyle, salão literário que Drummond participava no Rio de Janeiro, teria. Acredito que Drummond compartilharia suas trocadas de bondes seguindo pernas e ancas nesse grupo. Um amigo, que o conheceu, dizia que ele disfarçava sua preferência em olhar paras as pernas e seios das mulheres, como timidez. Olhava pra baixo por ser tímido, não por ser, digamos assim, “um véio safado”. Gilberto Freyre, se estivesse em grupo, enviaria seus comentários homofóbicos sobre Mário de Andrade. É de conhecimento que se referia ao paulistano como “frango”, termo pejorativo para homens gays no Recife. Oswaldo de Andrade estaria em todos, pois era muito querido. Riria e ajudaria nos comentários homofóbicos e nos machistas. Em uma das correspondências entre Mário e Manu, Bandeira se refere a Oswaldo como “um filho da puta gostoso”.
Há homens que apesar da genialidade e contemporaneidade de suas obras, mesmo com o passar do tempo, são homens estritamente do seu tempo. Na minha leitura, Borges, Fernando Pessoa, Drummond e Oswaldo de Andrade são homens geniais estritamente de seu tempo. Há mulheres que, mesmo parecendo romper com estruturas, também reproduzem seus meios e respectivos tempos, como Rachel de Queiróz e Elisabeth Bishop.
Há mulheres, porém, que são pessoas para posteridade. Entendo Hilda Hilst e Yoko Ono dessa forma. Pausa para os beatlemaníacos, que não conhecem a biografia e o trabalho de Yoko nas Artes visuais, proferirem impropérios a mim e a ela.
Mário e Manu, também, compreendo como homens para posteridade. Não que tenham sido virtuosos, ou jamais tenham refletido seu tempo. Pelo contrário, refletiram e erraram muitas vezes, assumindo esses erros publicamente, seja em suas correspondências privadas, ou mesmo em suas obras e crônicas de jornal.
Mário de Andrade na minha opinião, valendo-me de um termo contemporâneo, foi um escritor que sofreu um exposed na Revista de Antropofagia. Oswaldo de Andrade, após a famosa briga dos dois, passou a chamar o escritor pela alcunha de “Miss Macunaíma”, chegando a dizer que ele passava pó de arroz para embranquecer, entre outros boatos homofóbicos e racistas. Como todo exposed, há quem tome esses textos como verdade e até historiador renomado os reproduz como fatos, mesmo que não haja em nenhum outro relato sobre o autor de Macunaíma, algo que comprove esses textos.
Pela briga, Mário de Andrade foi recentemente chamado de ressentido por jamais ter voltado a falar com o autor de O Rei da Vela. Augusto de Campos, um dos poetas vivos que mais admiro, é o autor desse texto, porém, discordo totalmente. Não se trata de ressentimento, mas como o próprio Mário disse, respeito. Apesar de todas a exposição e ridicularização pública sofrida, jamais interferiu de forma negativa ou fez críticas às obras de Oswaldo. Pelo contrário, Antonio Candido relata em um depoimento no Centro Cultural, que ele continuava lendo os lançamentos do desafeto e inclusive explicitava que havia gostado muito.
Em relação à sua orientação sexual, escreveu a Manu uma carta que se inicia com “sobre minha tão falada homossexualidade”, lá na década de 1930, enquanto filósofos e escritores, inclusive defensores da causa, nas décadas de 1970, 80 e 90, ainda se valiam do termo homossexualismo. No que diz respeito às questões raciais, mesmo na sua incessante busca da entidade brasileira, debruçou-se sobre o tema várias vezes. Refez prefácios de suas obras falando do assunto e escreveu “Linha de cor”, refletindo a respeito das gradações do racismo brasileiro.
Manuel Bandeira, por sua vez, era muito próximo, sempre que vinha a São Paulo, esperava a visita do amigo ao hotel onde estava hospedado; ficava chateado quando não a recebia. Diferente de Carlos Drummond de Andrade que jamais foi se encontrar com Mário de Andrade enquanto ele morou no Rio, apesar de manter uma intensa correspondência com o escritor paulistano. Não se incomodava com as fofocas do meio literário. Aceitou convites para eventos do Departamento de Cultura e encantou-se com a apresentação de “A Nau Catarineta” feita pelas crianças dos parques infantis.
Dois homens que nas suas correspondências, a cada página que eu lia, correspondiam, não às minhas expectativas, algo desumano para exigir de alguém, mas ao meu desejo de humanidade absoluta. Rastros escritos para prosperidade.
Já os meus e de alguns, acredito que realmente mereçam a “morte absoluta”...
*verso do poema A Bruxa, Carlos Drummond de Andrade.
Que bom você por aqui!